As marcas da tragédia

O 630 é o quilômetro da morte. O ponto sinuoso da BR-282, entre os municípios de Descanso e de São Miguel do Oeste, foi capaz de, em uma única noite, engolir 27 vidas. Até as 23h50min de ontem, os feridos eram 101.

Se na escuridão se ouviu gritos e gemidos, é no clarão do dia que se enxergam as marcas da tragédia. Ferros retorcidos, objetos de uso pessoal quebrados, pedaços de roupas rasgadas.

Vinte e cinco metros ribanceira abaixo, o que restou de um caminhão desgovernado e de uma ambulância dos bombeiros. Os rodados arrancaram árvores e o capim, dando superfície à terra escura. O vôo dos veículos não foi solitário. Com eles despencou a solidariedade. Talvez, empurrada pela imprudência.

A chuva de ontem à tarde foi providencial: ajudou a lavar o asfalto tingido de sangue. A água despejada pelos carros-pipas também desavermelhou o chão preto, mas o cheiro dos corpos fica impregnado nas narinas.

Mesmo hábil, o trabalho dos bombeiros não consegue recolher todas as vísceras e os miolos humanos no meio das cargas de grãos de soja e de sacas de açúcar esparramadas.

Quem olha não acredita. Quem acredita prefere rezar. Este diálogo é comum entre moradores próximos, motoristas e caminhoneiros que observam o cenário da tragédia.

Equipes de resgate usam guinchos, caminhões, caçambas, ferro e cabos de aço para içar o que restou. Como se do Km 630 algo possa ser recolhido que não o sangue das vidas ceifadas pelo trânsito.

Um cenário de guerra se formou na noite de terça-feira no Km 630 da BR-282. Destroços de veículos e pacotes de açúcar e grãos espalhados misturavam-se a corpos dilacerados.

Feridos gritavam por socorro em meio à escuridão. Ambulâncias com sirenes ligadas rasgavam o silêncio da noite. Bombeiros voluntários, policiais, curiosos, jornalistas e pessoas à procura de parentes, atônitas, tentavam ajudar a retirar mortos e feridos.

Este cenário marca a terça-feira, 9 de outubro de 2007, como o dia da segunda maior tragédia, em número de mortes, já ocorrida nas estradas de Santa Catarina. Entre os 101 feridos, muitos estão em estado grave, sendo atendidos nos hospitais da região.

Ontem, foi dia de enterrar as vítimas, cuidar dos feridos e tentar entender o que aconteceu a partir das 19h de terça-feira, horário oficial do primeiro acidente.

Inconsolável, Noredi Beck, lembrou como foi seu último contato com a mulher Ivani, uma das dezenas de vítimas da tragédia. Às 11h de terça-feira, Ivani, funcionária da unidade da Cooperalfa em São José do Cedro, ligou para o marido dizendo que o show do cantor Daniel estava começando.

– Ela estava muito contente – lembrou, ontem, Noredi, sem conseguir segurar as lágrimas.

Ivani era uma das 15 mil convidadas da festa dos 40 anos da cooperativa, realizada no Parque de Exposições Tancredo Neves, em Chapecó. Mas o destino – ou a imprudência no trânsito – transformou o dia de sonho de Ivani em desespero para sua família. Além do marido, ela deixou um casal de filhos.

– Entre mortos e feridos, foi a maior tragédia que Santa Catarina já viu – definiu o policial Antônio Gilmar Freitas, da Polícia Rodoviária Federal.

Em 2000, outro acidente, daquela vez no Alto Vale do Itajaí, deixou 41 mortos e alguns feridos sem gravidade.

A sucessão de tragédias iniciou quando um ônibus, ocupado por 43 associados da Cooperativa Regional Alfa (Cooperalfa) que voltavam de Chapecó para São Miguel do Oeste, colidiu com uma carreta que ultrapassava na curva, em Descanso. Eram 19h.

Duas horas e meia depois, quando estavam quase encerrados os trabalhos de resgate dos seis mortos e mais de 30 feridos, outra carreta, carregada com açúcar, atingiu os veículos e as equipes de socorro que estavam paradas na rodovia.

Segundo informações da Polícia Rodoviária Federal, 14 veículos foram atingidos no acidente, entre eles quatro do Corpo de Bombeiros, um da Polícia Militar e dois da PRF, além do ônibus, carretas e caminhões.

O local da tragédia, um trecho sinuoso da Serra do Rio das Antas, dificultou o resgate. Não havia sinal de celular e os equipamentos de iluminação eram escassos.

As marcas da noite trágica continuam no asfalto. Dois veículos ainda não haviam sido resgatados até o final da tarde de ontem.

O trânsito, liberado em meia-pista a partir das 14h30min, seguiu lento, como se desse mais um recado de cuidado para os motoristas.

Fonte: Diário Catarinense