O peso de uma vaia

Homem das multidões, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acusou o golpe.

Ontem, no programa oficial Café com o Presidente, Lula disse que estava "triste" com as vaias sofridas no Maracanã, na abertura do Jogos Pan-Americanos 2007, na última sexta-feira, porque fora preparado para "uma festa".

– É como se eu fosse convidado para o aniversário de um amigo meu, chegasse lá e encontrasse um grupo de pessoas que não queria a minha presença – disse.

A vaia a um dos presidentes do Brasil mais populares da história contemporânea ganha dimensões históricas, mobiliza adversários e divide parte da intelectualidade.

Na sexta-feira, em meio à abertura do Pan, Lula faria o que chefes de Estado tradicionalmente fazem desde 1951 no principal evento esportivo das Américas. Ocuparia o palco e diria: "Declaro abertos os Jogos". Mas sempre que o nome de Lula era mencionado ou sua imagem era projetada nos telões, parte dos presentes o vaiava.

O presidente decidiu, então, quebrar o protocolo, e deixou que o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman conduzisse a cerimônia.

Desde que as hostilidades ecoaram no templo do futebol, intelectuais tentam interpretar o que aconteceu. Na avaliação do antropólogo Roberto Da Matta, vaias e aplausos são manifestações intrínsecas à democracia.

– O presidente está sujeito a ser vaiado. A surpresa do Lula talvez se deva ao fato de ele ser de uma origem deliberadamente populista. Para o presidente, ele deve ser aplaudido sempre. Eu, se estivesse no Maracanã, teria vaiado também – diz Da Matta.

Para a cientista política Céli Pinto, o Pan amplificou o pensamento da minoria da população brasileira.

– Quanto cada um pagou para entrar no Maracanã? Até R$ 200. Quem paga este valor, e leva a família, não vota no Lula. E esse é o público que estava lá. Se o Lula fosse num Maracanã com entrada franca, onde estivesse o povo, provavelmente não teria sido vaiado – avalia Céli Pinto.

Delegação dos EUA também foi alvo

Cientista político como Céli, o diretor da Quatro Consultoria Política, Rubens Figueiredo, entende que a manifestação deu voz a "setores sociais descontentes".

– O que é positivo inclusive para reduzir a empáfia do governo – opina Figueiredo.

Além de Lula, a delegação dos Estados Unidos teve a desaprovação popular – o que se repetiu na premiação da ginástica olímpica feminina, na noite de sábado, quando atletas norte-americanas ouviram murmúrios das arquibancadas enquanto recebiam medalhas de ouro.

Desde que decidiram invadir o Iraque, em 2003, os EUA vêem o antiamericanismo multiplicar-se em parte do planeta.

– O povo brasileiro admira a prosperidade material dos EUA, mas é hostil em relação ao país que trata o resto do mundo como quintal – avalia o filósofo da Universidade de Campinas (Unicamp), João Quartim de Moraes.

No caso do Brasil, há ainda outro fator. Na semana em que os jogos no Rio se iniciaram, um integrante da delegação daquele país escreveu em um quadro a seguinte mensagem para os compatriotas recém-chegados ao Riocentro:

– Welcome to the Congo!

O "bem-vindo ao Congo", em bom português, era uma alusão ao calor carioca, explicou o incauto autor da frase, mas foi interpretado com um desrespeito para os brasileiros.

Quando começou
A vaia, acredite, é uma manifestação de desaprovação pelo menos desde a Grécia Antiga, e a data mais antiga estabelecida para ela é o governo do reformador grego Clístenes, um dos governantes de Atenas que ajudaram a formar o conceito de democracia, no século 6 a.C. Os gregos reunidos em assembléia na ágora manifestavam sua aprovação ou desaprovação aos oradores por meio de palmas ou vaias, bem como hoje. E os concursos de teatro nos quais competiam as tragédias, por ocasião dos festivais religiosos, eram de comparecimento obrigatório, daí a população vaiar as peças que não gostava para que sua apresentação fosse interrompida com antecedência. Também as vaias decidiam o destino de um gladiador no Coliseu durante o Império Romano, e mesmo as discussões dos vetustos senadores da Roma Antiga eram acompanhadas pelas aclamações dos favoráveis e pelas vaias dos opositores.
Protesto no enterro
Não foi a primeira vez que o presidente Lula foi vaiado em público. Uma das manifestações de desapreço mais polêmicas ocorreu em 22 de junho de 2004, quando o presidente compareceu ao velório do ex-governador Leonel Brizola, no Palácio da Guanabara, no Rio (ao lado). Lula, que chegou ao local acompanhado por alguns de seus ministros, foi vaiado por muitos pedetistas presentes e xingado aos gritos de "traidor". Lula foi embora da cerimônia apenas 12 minutos depois de sua chegada, a conselho dos responsáveis por sua segurança.
Eles também fazem
A repercussão na imprensa dos EUA foi tão grande quanto está sendo agora o episódio das vaias a Lula na cerimônia de abertura do Pan. Em fevereiro de 2005, o presidente norte-americano George W. Bush esteve no plenário do congresso de seu país cumprindo uma das tradições institucionais da democracia americana: o Discurso do Estado da União, uma fala direcionada aos congressistas em que o presidente faz um balanço de suas realizações e projeta suas metas.
Clima de animosidade entre governo e oposição nessas situações não chega a ser novidade. O discurso de Bush em fevereiro de 2005, contudo, teve vaias altas e bem audíveis da bancada de oposição democrata ao presidente – um acinte em um país que preza suas instituições políticas.
Proibir não pode, vaiar também não
Na eliminatória paulista do 3º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, Caetano Veloso (à direita, na foto abaixo), apresentava sua composição É Proibido Proibir, e foi alvo de intensa vaia do público que o considerava alienado. O compositor parou de tocar e comprou a briga, xingando de reacionária a juventude esquerdista que, nas suas palavras, "não estava entendendo nada"
– Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos – provocou. Vaias foram marcas características de todos os festivais do período. Nesse mesmo FIC de 1968 o público dedicou os maiores apupos possíveis à vencedora, a canção de Chico Buarque e Tom Jobim Sabiá, preterida em detrimento da preferida do público politizado de então: Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré.
"Bin Laden! Bin Laden"
O anti-americanismo que levou o público brasileiro a vaiar as atletas da delegação americana neste Pan não é fenômeno deste ano. Em janeiro de 2001, na 3ª edição do festival Rock in Rio, a popstar Britney Spears, ao interpretar a música Lucky, projetou no telão uma bandeira americana. O público vaiou e repudiou a imagem aos gritos de "Brasil, Brasil".
Comportamento semelhante teve o público que assistiu ao show do guitarrista sueco Yngwie Malmsteen, no dia 2 de novembro de 2001. Menos de um mês após os atentados em Nova York, o público vaiou Malmsteen, que havia executado na guitarra um arranjo do hino americano, Stars Spangled Banner. Quando o artista, incomodado, insistiu na música, ouviu o público gritar "Brasil" e "Bin Laden". O show foi interrompido.
Garrafa dágua na cabeça…
No mesmo Rock in Rio 3 no qual Britney Spears foi vaiada por mostrar uma bandeira americana no palco, em 2001, Carlinhos Brown passou maus bocados. Ao levar para o palco uma mistura de timbalada, funk e MPB, Brown foi vaiado e teve copos e garrafas de plástico jogados em direção ao palco. Brown desceu no palco e recebeu ainda mais copos. Encerrou a apresentação antes do previsto com gesto obsceno aos roqueiros da platéia.
"Fecha a cortina"
A performer Denise Stocklos (abaixo), destaque com suas apresentações que casam texto, encenação, mímica, apresentou em setembro de 1995 a peça Elogio no 2º Porto Alegre em Cena. Quando o espetáculo, com duração de três horas, estava na segunda hora, um grupo de 30 pessoas exigiu, aos gritos e muita vaia, que a peça fosse interrompida antes do fim. "Fora" e "Fecha a cortina" foram as palavras gritadas pelos descontentes.
O detalhe que azedou ainda mais o episódio foi que a maior parte dos que protestavam eram colegas de profissão.

Fonte: Diário Catarinense